Requiem

Com todo o peso nas costas, entrarei pela porta dos fundos, procurarei a fileira J e me sentarei no assento 17. O silêncio já escuro daquela sala pesará ainda mais; a partir desse momento, me sentirei sem passado, sem alma. Se antes as feridas não doíam era porque não as via; mas na hora certa saberei saber que elas já estão ali há muito tempo.

A sala de cinema estava completamente vazia; ligar o projetor ali era um desperdício; deixar os grandes poetas silenciados enjaulados dentro de seus livros é o maior pecado que o homem pode cometer. Se dependesse apenas de mim aquela sessão para ninguém jamais aconteceria.

Antes do terceiro apito, me deixarei levar pelo barulho da pipoca quebrando entre meus dentes sob a força do meu maxilar. Sentirei aquele sabor morno, que me ajudará a apagar o mundo lá de fora antes de me concentrar no mundo novo apresentado a cada peça, para que eu esqueça minhas dores e passe a sentir as dores de outrem.

No palco eu me sinto empolgada ansiosa pelo início... Antes do abrir das cortinas já posso sentir a ansiedade compartilhada de cada um dos corações aflitos sentados na plateia. No espetáculo de hoje não vemos leões nem o globo da morte nem nada que nenhum homem comum não tenha já vivido. O papel é escrito especialmente para mim e trata da angústia de ser humano.

Inseri a fita cassete e com o controle remoto dei o play. Um filme de toda minha infância passou diante dos meus olhos. Em meio à névoa discernia os rostos da professora que me mostrava os primeiros passos no caminho das letras. Via também as árvores na beira da estrada passando rápido demais não deixando ser contadas enquanto viajávamos para as festas de fim de ano. Era uma pena que ninguém mais compartilhasse dessas mesmas memórias. Me senti único e por isso sozinho.

A projeção holográfica que passarão a apresentar será pobre; as figuras parecerão ocas e sem vida; serão planas como folhas de papel e azuladas como a luz que sai da tv. Não haverá legendas nem programa nem chaves de interpretação; serão apenas sons dissonantes, ideias desconexas, fantasias alegóricas ininteligíveis e frias. Tudo parecerá vago. Eu já tinha sido alguém para poder ter me tornado apenas uma lembrança daquele jeito.

É como ser vaiada ver a plateia vazia. É nauseante ter que enganar a mim mesma fingindo ser uma outra pessoa apenas para me convencer e a ninguém mais. Enquanto a alegria é compartilhável e desejável, a dor se sente só e abandonado. Me sinto rejeitada e menor. Se isso é uma peça pregada, não tem mais graça e já está na hora de revelarem o segredo! Se isso é um pesadelo, já é dada a hora de eu acordar!

Depois daquela sessão, com duração de três vidas ou mais, apertei stop, desço do palco e levantarei do meu assento para deixar aquele estado mental me corroer e o fazer fazer de mim um novo ser, tão ilúcido e incompleto e ignorante de suas próprias aptidões e virtudes como antes. Antes eu era um humano incapaz de pensar minha existência, agora passei a ser um ser humano consciente dessa redundância.

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