Depoimento

Lembro uma vez, logo que comecei a trabalhar com caminhão, eu tive esse sonho estranho. Ainda lembro muito bem dele, os detalhes, o cheiro, os barulhos tudo. Ainda me arrepio, só de lembrar.
Sonhei que eu tava nessa estrada; era uma reta de alguns quilômetros, sumia na vista; o asfalto lisinho. Eu dirigia essa carreta; eu sabia na minha cabeça que ela tava carregada. E tava tudo tranquilo, tinha dormido bem, tava prestando atenção. A uns noventa por hora, cem talvez.
Do nada, numa piscada, eu tava nessa rua movimentada, com criança de tudo que lado; correndo, andando, paradas… Meu primeiro instinto foi tentar reduzir a velocidade, mas o breque tava solto, não obedecia; parecia até que o caminhão corria cada vez mais. E aquela criançada vindo pro meio da rua e saindo, correndo, outras devagar.
Aí tudo aconteceu em câmera lenta.

Eu vi tudo e ouvi tudo e senti tudo.

Consegui parar o caminhão e voltei pra ver. No chão, vários pedaços de carne do que parecia ser frango e um cheiro forte de feijão azedo – dava vontade de vomitar. Não tinha mais criança, nem fora da rua. Mas eu ainda ouvia o barulho delas, brincando, correndo, se divertindo.
Eu fico pensando como seria atropelar alguém. Me pelo de medo! Será que bate essa frieza assim e a gente vê a pessoa como se fosse só um pedaço de carne?
Até hoje isso me incomoda.
Pensei até em largar a boleia.
No fim, só passei a prestar mais atenção no trânsito; me cuidar mais. E frango eu parei de comer. Não posso nem sentir o cheiro. Feijão ainda como. Normal.

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