meus pecados

— Me perdoe, padre, porque pequei.
Na noite anterior eu tinha ficado o dia todo fora e cheguei em casa mais tarde que o habitual. Eu não vinha dormindo nem comendo direito nos últimos dias e pra piorar passei no bar antes de finalmente ir pra casa. Eu estava tonto e com dor de cabeça, por isso na hora nem acreditei no que estava acontecendo. Eu me sentia dormindo. Como de costume, entrei, passei pela sala e fui direto para o meu quarto. Do corredor vi que a luz do meu quarto estava acesa; nem me liguei muito nisso na hora já que eu podia tê-la deixado acesa pela manhã. Deitado na minha cama havia um homem. De bruços, bem vestido, de sapatos, de paletó; não conseguia ver seu rosto.
Senti naquela hora uma das sensações mais estranhas que já senti; era uma mistura de surpresa, com apreensão e curiosidade; era como se algo me dissesse pra não chegar perto e deixar aquele homem ali mesmo e ir embora. Hesitei, admito, e saí do quarto. Me joguei de qualquer jeito no sofá da sala, atordoado e chocado — pela bebida, pensei na hora, eu devia ter bebido demais. O que me chocava era a fisionomia daquele sujeito; pouquíssimas vezes em fotos ou em vídeos eu tinha me visto de costas, sabia que eu não seria de capaz de me reconhecer de algum jeito que não pelo rosto; afinal nunca enxergamos nossos próprios trejeitos, não é mesmo? Seja como for, eu sabia que aquele cara no meu quarto era eu!
Nunca fui católico, e sempre fiz questão de não ficar contando as merdas que eu faço pra todo mundo. Mas dessa vez me senti impelido e forçado a contar. Eu estava sendo corroído por dentro. Mais um pouco e quem morria era eu.
Estava dentro de uma daquelas cabines de confissão e via o padre, velho, por detrás de uma gradezinha de madeira; eu não via o rosto dele e fiquei mais à vontade quando passei a pensar que ele também não me via. Ali dentro a sensação claustrofóbica era aterrorizante; acho que as pessoas ali confessam até o que não fizeram, como numa câmara de tortura.
Sim, não consegui aceitar aquilo naturalmente. Só é parecido, pensei; quem sabe era algum irmão perdido, primo, parente, sei lá! Quem sabe seja dada a hora de parar com as sessões de terapia e me mandar pro psiquiatra. Ou era aquele a minha persona personificada ali pra que eu conseguisse finalmente entender meus próprios desejos e medos e inseguranças.
Me levantei do divã e saí do confessionário; eu tinha desistido de contar minha história, pra quem quer que fosse. O velho também levantou e me seguiu; pedi que ele me deixasse e ele, com aquela voz desnecessariamente calma demais, me perguntou o que me afligia.
— Eu matei aquele homem, caralho!
Ele pedia que eu me acalmasse e que eu continuasse contando; e começou a me tratar como uma criança. Eu via o meu pai, com seus sermões baratos, nos quais nem ele acredita, ali em pé na minha frente. Hipócrita e ridículo!
Sentei no chão da sala e ali, inerte, fiquei observado um ponto qualquer na parede, absorto, tonto, incrédulo, planejando o que eu deveria fazer. Agora parece que o que eu sentia era medo; eu não queria me encontrar comigo mesmo; não tinha a moral de me olhar nos olhos e deixar que alguém que me conhece como me conheço me visse.
Antes que eu pudesse decidir qualquer coisa, ele veio até mim. Ele veio até a sala, sem saber da minha presença; ouvi ele vindo, fiquei em pé e o esperei. Quando ele me viu, vi estampado em seu rosto tudo aquilo que senti quando o vi na minha cama. Eu me sentia capaz de ler seu pensamento; era familiar, claro e óbvio. Seus olhos tremeram e ele desviou o olhar procurando proteção. Estranhei, mas eu sabia o que ele estava fazendo. Mas esperei.
Como não conseguiu achar nada ali na sala que pudesse ser usado como arma contra mim, ele veio pra cima de mim, pra me bater, de mãos limpas, na porrada! Ele era forte — tanto quanto eu — e eu ainda estava bêbado. Brigamos ali na sala; acabei cheio de hematomas e com um corte no lábio. Parecia claro para nós dois que não podíamos co-existir, que só um de nós poderia sobreviver — por mais absurdo que isso soe pra qualquer um agora — naquele momento era essa a regra. Depois de nos esmurrearmos no chão, consegui bater sua cabeça no chão e atordoá-lo. Bati em seu nariz várias vezes até que ele entendesse que era eu quem estava no controle. Como um monstro irracional, continuei batendo nele mesmo depois de tê-lo feito sangrar. Debruçado sobre ele, eu lhe dava socos com as duas mãos, mesmo depois de vê-lo inconsciente. Eu batia sua cabeça no chão e só parei depois de ter me dado conta de que ele estava morto.
Não me orgulho disso; mas ainda acho que fiz o que tinha que ser feito; embora se me perguntarem não vou admitir. Tanto que escondi todos os vestígios. Me livrei do corpo, apaguei todos os seus rastros — recolhi minuciosamente cada gota do sangue que derramamos. Mas parece que, ainda assim, o cheiro de morte ainda está por toda a parte. E tenho a impressão que todos que entram lá podem sentir.
Sei que moralmente qualquer meia dúzia de pílulas de ave-maria já me curam, mesmo eu não tendo nenhuma doença pra ser curada. Só o que eu precisava era vomitar e já fiquei bem — mas com a sensação de que outros mais daquele virão e que nas próximas vezes talvez o morto seja eu

3 comentários:

  1. Esse texto me fez lembrar o So did mine.

    Gosto dessa visão de si mesmo como se fosse outro, dessa existência (quase) concreta de um outro eu, do assassinato de um desses eus. Gosto também da certeza de que outros desses virão e morrerão, como se um deles sempre precisasse morrer para que o outro sobrevivesse, até que venha outro que o mate e tome seu lugar, ou seja morto.

    Além disso, tenho uma coisa com suicídios de personagens, e esse suicídio/homicídio me encanta! :)

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  2. Eu queria me encontrar com essa outra parte de mim e falar umas boas verdades! :P
    O melhor é que pra salvar a moral basta ir pra igreja! auhsuahsuahsah

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  3. Fosse eu teria dormido com o cabrito gêmeo. Nada menos pudico e humano que o próprio pecado. Depois, imagina a boa ventura de saber como atingir o que se quer na cama.
    Agora, sério. Perdoa o comentário cafajeste, gostei do seu texto. Abraço.

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