18h07

O relógio era sempre pontual. Às sete horas da manhã, ele era sempre o primeiro a acordar. Para ele as coisas eram sempre mecânicas; de modo algum ele se preocupava com a rotina. Ele sorria enquanto apitava o alarme. Era aquilo que o tornava vivo, era-lhe tão prazeroso ser capaz de prever o futuro. Ele sabia com toda a certeza que dali trezentos segundos seria 7h05. E, depois de seiscentos, seria 7h10. Novecentos segundos e era 7h15.
O relógio sabia, talvez tão bem quanto ela mesma, que após quinze minutos de soneca, ela se daria conta de seu atraso e, com cara de espanto, e com uma descarga de adrenalina, sairia correndo pela casa se aprontando para, no máximo às 7h30, sair de casa.
O relógio sabia, da mesma forma que sabia quantos minutos tem uma hora, que sua rotina parecia menos maquinal que a dela. Ela sempre todas as manhãs tinha os mesmos hábitos, as mesmas manias, os mesmos procedimentos. O relógio sabia quanto tempo ela demorava no banho e o tempo que ela se enrolava calçando os sapatos.
Ainda terminando de ajeitar sua roupa, ela saía às pressas, agarrando sua bolsa e batendo a porta atrás de si. O relógio assistia a tudo e se impressionava com sua pontual impontualidade. Ela estava todos os dias pontualmente atrasada.
O relógio não sabia como era a rotina dela fora de casa; não fazia ideia do quanto uma profissão pode ser metódica e rotineira. O relógio sabia que, todos os dias, dez horas após ter saído de casa, ela voltava exausta e com um semblante infeliz; deixava a bolsa sobre o sofá, ia ao banheiro, ia à cozinha, tomava dois copos de água da geladeira e em seguida ia ao quarto e sentava-se sobre a cama. Todos os dias do mesmo jeito. O relógio sabia como acontecia e sabia prever como aconteceria no dia seguinte.
…até as 18h07. Dali em diante, era como se outra alma tomasse o lugar daquela. Seu corpo, antes pálido, tornava-se viçoso; seus lábios, azulados, tomavam cor – era como se lhe enfiassem ânimo goela abaixo.
Depois disso, seus passos eram inconstantes e imprevisíveis. Ela flutuava por aquela casa. As luzes ganhavam outros tons. A pintura e os móveis da casa passavam a ser aconchegantes. O quer que ela fizesse nesses horários a deixava satisfeita. O relógio a notava mais ou menos triste, dia a dia, sem lógica nem razão aparente. Mas ele notava que aquilo lhe dava prazer; ela, naqueles momentos, fazia o que ela realmente queria fazer, as coisas de que mais gostava.
Entretanto, embora "inconstância" fosse a palavra-chave para defini-la, o período de imprevisibilidade era mecanicamente rotineiro. Todos os dias, ela, cansada e satisfeita, ligava na televisão um dos filmes de sua coleção, deitava no sofá e assistindo dormia sempre antes do fim. Sempre acordava nos créditos e finalmente ia para a cama dormir.
Àquela hora, a menina que levantava e seguia para a cama, ainda meio dormindo, parecendo um robô, não era mais a menina animada das 18h07; essa era pálida, de lábios frios e secos. Ela, dormindo, parecia estar morta; e era o relógio quem velava seu corpo. Todos os dias ela nascia e vivia um pouco de seus últimos momentos; e o relógio sabia disso.


3 comentários:

  1. *___*

    sem palavras.

    mentira.
    o que eu posso dizer é que ficou

    perfeito!

    (acredito que foi difícil escrever baseando-se na minha ilustração, mas ficou maravilhoso!)

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  2. Deve ser chato ser um relógio.

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  3. Maravilhoso, e além disso!

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