Não É Sobre Amor

O mágico não levava jeito com a corda bamba. Sua varinha era pequena demais para manter-lhe o equilíbrio, que ele mal conseguia equilibrar a cartola em sua cabeça. A plateia, evidentemente, torcia para que ele caísse.
Do outro lado da corda, sentada sobre algo que parecia ser um trampolim, a bailarina, vestida para encenar O Lago dos Cisnes, segurava um algo que pendia do teto e que parecia com um trapézio.
Lá embaixo, o palhaço tentava chamar toda a atenção para si. Ele recitava um poema chato sobre como o mundo havia sido criado enriquecido com rimas pobres e iambos e troqueus.
Meu papel era fazer com que tudo desse errado. Eu seria o primeiro a rir quando um deles falhasse e a puxar vaia quando o truque fosse mal executado ou a piada fosse sem graça. E, para isso, eu carregava comigo uma espingarda.
...

Seria muito mais simples se em vez de ter de se equilibrar o mágico pudesse transformar a corda numa prancha ou algo largo e firme o suficiente para que se pudesse simplesmente caminhar sobre ela. Ou quem sabe uma corda invisível presa ao teto que o fizesse não só se manter equilibrado, mas ser capaz de flutuar levemente por sobre o picadeiro.
A bailarina olhava para ele como se pacientemente o esperasse. Ela era sem dúvida a criatura mais atraente, porque misteriosa, de todas sob aquela lona. Havia um brilho terno em seus olhos; uma coisa que eu não me sentia capaz de fazer dar errado.
De propósito, dei atenção ao palhaço; ninguém mais estava olhando para ele; era mais fácil que ele arrancasse pena das pessoas do que risos. Era dramática sua situação; se eu conseguisse fazer dar errado, eu estaria, paradoxalmente, fazendo com que as pessoas rissem do palhaço.
Minha responsabilidade era a maior de todas. Eu mudaria o curso das ações; aquele espetáculo ao avesso tomaria outras proporções devido simplesmente à minha presença e, sobretudo, à minha vontade. Se alguém deveria ser culpado, esse era eu.
...
O mágico era um mágico. E não um mago. O que ele fazia era enganar as pessoas, se aproveitar de suas falhas de percepção e se usar de apetrechos tecnológicos para que todos acreditassem nele. Mas sabia que ninguém acreditava. Se ele fosse mago, ele implantaria sua verdade nas pessoas; elas acreditariam e nem questionariam. Ele poderia se transformar num dragão e salvar a princesa. Ele não teria que estar ridiculamente se equilibrando sobre uma corda frouxa no alto de um circo falido para um público respeitavelmente imbecil. Ele não precisaria se submeter a tanto para poder cortejar uma dama, a sua dama.
A dama havia se posto em pé sobre o trampolim; seu brilho nos olhos e suas sobrancelhas clamavam pela ajuda; era possível sentir a insegurança na delicadeza com que segurava o trapézio; suas pernas, tremendo, faziam o trampolim sacudir. Ela estava prestes a cair e nós, todos nós, riríamos e iríamos para a casa contentes e, principalmente, satisfeitos.
O palhaço falava da chuva que molhava as almas impiedosas que deixavam de existir por terem sido esquecidas e abandonadas; falava asneiras sobre criaturas de carbono que achavam que um dia virariam diamantes. Era ridícula a convicção estampada debaixo de sua maquiagem; mas eu preferia não rir para que não parecesse que o engraçado era o palhaço. Sua metáfora era sarcástica e corrosiva, mas, vinda de baixo, não nos atingia.
Por isso, naquela noite eu ia querer usar balas de festim; meu objetivo era chocar e não, nunca, machucar. Limpei a arma e carreguei uma bala em cada cano; eu sentia que ela sabia melhor do que eu o que aquilo significaria.
...
Com todo o cuidado, apoiei a espingarda entre as pernas e coloquei os dois canos dentro da minha boca; delicadamente, estiquei meu braço alcancei o gatilho, de modo que a arma fizesse um ângulo reto com meu nariz; relaxei meu corpo e olhei em volta.
Os três atores em cena estavam parados – a não ser pelo tremelicar das pernas da bailarina, o leve chacoalhar da corda que o mágico penava em manter firme e o suspiro profundo do palhaço de olhos vazios –, a audiência ensandecida estava tensa e calada.
Puxei o gatilho e ouviu-se um estrondo. No mesmo instante a bailarina desequilibra-se e cai – no seu rosto nós todos vemos seu desespero; a corda bamba do mágico arrebenta e ele vê sua morte lhe esperando no chão de braços abertos; todos vemos a bailarina não sendo forte o suficiente para sustentar seu próprio corpo soltando seus dedos delicados do trapézio. Víamos todos, com uma mistura de ânimo, excitação e alegria, a morte deles sorrindo lá embaixo.
Na mesma velocidade que o inesperado tinha começado, o mágico prende-se magicamente à corda, que, num movimento centrífugo, o joga em direção à bailarina. Ele consegue alcançá-la no ar e, como num passe de mágica, os dois chegam ao chão são e salvos. E quando seus pés tocam o chão uma revoada de pombos brancos eclode em direção ao céu; no fundo acende-se um coração vermelho feito em neon.
O respeitável público aplaude em pé, sem entender. Rosas são jogadas ao picadeiro. Sob as rosas, o palhaço: o tiro o havia atingido. Já não mais respirava e ninguém mais o via. Seu último discurso se tornou seu epitáfio. E era sempre assim: cada vez que eu me matava, era sempre o palhaço que morria. Era sempre o palhaço que morria.
 

13 comentários:

  1. eu fiquei na expectativa de um último SHOT! para me matar de rir...

    beijo, gostei, mas vc podia ter elaborado hein...q foi, anda preguiçoso colega?? hahaha

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  2. calma, colega! essa é a primeira parte! ;D

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  3. A bailarina! *-*

    (só pra constar que ela me encantou)

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  4. Amargo. Intrigante, também.


    [nunca vi tamanha frequencia de post por aqui... ;p]

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  5. Eu.. Uau.. Nem sei o que comentar. Mas sei que tu gosta desses feedbacks... Então, o que posso dizer?
    Confesso que li quase todo o texto com a cabeça meio confusa, mas na última linha tudo fez sentido, se encaixou e foi como um "boom", me emocionei.

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  6. e no final somos todos palhaços... (?)

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  7. Vou tentar explicar oq eu senti.
    Primeiro, esse conto me lembrou uma conversa que tivemos ha muuuito tempo, sobre textos que podem ter várias interpretações. Variando de pessoa pra pessoa.
    Ou seja, essa foi minha interpretação, independente do que você queria dizer.

    Quando li o título pensei "Pff, é claro que é sobre amor..."
    Mas minha cabeça não está muito ligada nesse sentimentozinho ultimamente. haha. Então consegui afastar esse ponto de vista... "romântico"
    Mas durante toda leitura, aquilo não fazia sentido, eu só pensava.. "Bah, quer ver que é sobre amor mesmo?". Mas no fim, pensei "Não, não é sobre amor, é sobre você, é sobre os vários 'vocês'"

    Como se tivesse chegado em um momento confuso na vida, um momento em que precisava fazer alguma coisa, precisava mudar, afinal, em todos os campos tudo dava errado. La estava o seu "eu" apaixonado, a insegura bailarina. Lá estava o "eu" que mostra pra todo mundo, o mágico que quer mostrar muito mais do que tem, mas engana bem. La estava o palhaço que pensa que sabe tudo, que divaga sobre a vida, que busca as razões, que quer atenção e ao tentar fazer isso acaba ficando cômico na aparência, mas acaba caindo naquele dito "Seria cômico, se não fosse trágico". E o narrador, a razão analisando todas essas faces, precisa fazer alguma coisa antes que o circo desabe e tudo se acabe, então ele da o tiro.
    No fim o mágico se junta a bailarina 'em terra firme'. E toda a necessidade de encontrar razões para o circo ainda estar de pé morre com o palhaço.

    Hum, entendeu?

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  8. Caro, este é, sem trocadilhos, espetacular! Que sequência de imagens! Eu fiquei pensando se tudo isso se passou em um minuto ou se foi a noite toda (sim, eu acho que era noite). Eu li que vai ter mais. Já estou impaciente! Abração!

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  9. isso é tudo, meus caros. eu falei que era só a primeira parte porque eu tinha postado só a primeira parte (:

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  10. Gostei,
    Surpreendente o fim desta sua primeira parte.

    O que me intrigou foi a escolha das personagens vivendo aquela situação em que o mágico e a bailarina estão lá em cima. é quase que absurda.

    O lago dos cisnes é um balé de 3 atos e é um dos mais populosos: são trocentos bailarinos em cena. Mas vamos supor que iria interpretar um solo.
    Definitivamente não utilizaria o verbo "encenar" balé, dança-se ou interpreta-se um solo/(de)um balé.

    Refletindo sobre a personagem bailarina acredito que se ela estivesse se preparando (psicologicamente talvez) para dançar um solo do lago dos cisnes ela não estaria onde estava...
    já viu como bailarinos se preparam? Definitivamente não é sentada no trampolim segurando o trapézio.

    Seria ela trapezista?

    não consegui ver uma bailarina, vi uma trapezista.

    ou talvez a explicação fosse outra.

    Para mim, um mega turbo power crítico de literatura (hahaha)seu texto perdeu ponto aí.

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  11. anônimos chatos que não me permitem nem enviá-los um contra-argumento! tudo bem, tudo bem, um dia você volta aqui e lê meu comentário aqui.

    prezado anônimo,
    (antes de mais nada, se tinha alguma ironia no teu comentário, vou ignorá-la, pois nao sei se você é do tipo que faz ironias, ja que eu NEM SEI QUEM É VOCÊ!)
    fico supercontente de você ter lido o texto e publicado sua opinião sobre ele.
    uma coisa que sempre falo para todos os meus leitores: qualquer leitura dos textos é válida contanto que faça algum sentido, mesmo que só faça sentido para o cara que viu esse sentido. portanto, concordo plenamente com sua ideia de que não faz sentido nenhum uma bailarina vinda do Lago dos Cisnes estar sozinha num picadeiro. mas poderíamos dizer o mesmo do absurdo de o mágico estar na corda bamba. ou, ainda, assim: que tal que, em vez de ser o deslocamento de cena da bailarina, o absurdo seja a trapezista estar vestida de bailarina? bem isso não só não resolve a questão, quanto a amplia ainda mais. talvez, de fato, a explicação seja outra.
    e por que o texto perde ponto? o texto só passaria pelo crivo da crítica se não tivesse uma bailarina que mais parece uma trapezista?
    quanto "encenar balé", eu diria que "dançar" se usa pra um forró, um tango: uma dança, enfim; um balé é mais do que uma dança. não discordo do "interpretar", entretanto.

    já que você é um crítico mega turbo power, peço que volte mais vezes - se é que você já não o faz, só que deixando seu nome :)
    obrigado, volte sempre.

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