Sentido na Pele

Já passava do meio-dia quando ele finalmente acordou. Não reconheceu o quarto; estava bastante bagunçado, com roupas espalhadas por todos os lados. Ele se perguntava o que estava fazendo naquele lugar e há quanto tempo estava ali e por que estava pelado.
Levantou e caminhou por aquele lugar, que parecia um quarto de hotel barato. Em cima de uma penteadeira ao lado da televisão tinham umas cartas de cobrança endereçadas a um tal Roberto. Devia ser ele.
Saindo do quarto, percebeu que aquilo não era um hotel, mas uma residência; algo lhe dizia que era ali que ele morava. Ainda pelado, procurou por vestígios de mais pessoas na casa. Parecia ser a casa de algum solteirão de meia-idade. Ele não sabia de quem era.
Ao se olhar no espelho, entendeu quem era Roberto. Ele não se conhecia naquele corpo, mas sabia, apenas por dedução lógica, que aquele que o olhava era ele mesmo. Era um rosto cansado, que começava a apresentar rugas; o cabelo era preto e do meio despontavam alguns fios brancos. Roberto perguntou-se quantos anos haviam se passado.
Ligou a televisão e no telejornal viu que já haviam passado do ano dois mil. A moça bem vestida se esforçava para parecer preocupada com o que dizia. Eram basicamente as mesmas notícias, mas os números eram mais alarmantes e aumentava (e aumentava) o número de mortos.
Ele não entendeu exatamente onde a moça queria chegar dizendo tudo aquilo; não conseguia ver em que media aquilo afetava sua vida. Na verdade, Roberto não pensava em nada disso.
Decidiu sair e ver o que tinha lá fora. O sol sofria tentando se manter aceso por detrás das infinitas nuvens cinzas. Na rua, as pessoas tinham todas o mesmo formato e se vestiam maquinalmente iguais; era preciso paciência, força de vontade e perspicácia para perceber no que elas se diferenciavam. Todas, sem exceção, não se sentiam confortáveis com o fato de Roberto estar pelado.
Um homem que se apresentou como Pedro (mas que poderia se chamar João, Schmitz, Goku ou HR432), cristão, bem-apessoado, de bom coração, conhecedor das normas de bom costume e disposto a transmitir (como verdades absolutas) os valores de sua moral benévola que “poderia salvar o mundo” resolveu ajudar Roberto: envolveu-o com seu casaco, abraçou-o e levou-o a um lar de caridade onde pudessem lhe dar roupas.
Com sua boa-ação do dia feita, Pedro despediu-se cordialmente e imergiu no meio da multidão. Roberto, vestido, pôde finalmente se misturar ao bolo. Agora, quem quer que o visse, facilmente o consideraria um legítimo BT!
Mas Roberto sabia que não era. Mas Roberto não sabia o que era. Imerso, frequentou aquele mundo pelo tempo que conseguiu. Disposto a entender como tudo funcionava, juntou-se àqueles com quem conseguia interagir. Viu que alguns deles saíam à noite, reclamavam do que estavam fazendo e bebiam (e bebiam); seis ou sete dias depois, faziam de novo com o que tinham acumulado nos dias anteriores. E Roberto, na verdade, não pensava em nada disso.
Em casa, Roberto vivia pelado. Raramente ligava a televisão e não tinha nenhum tipo de entretenimento habitual. Para ele, parecia que o tempo simplesmente passava; sem que ele precisasse forçar sua passagem ou se esforçasse para que não escapasse por seus dedos.
À noite ele podia sair pelado – contanto que não encontrasse ninguém; quanto mais tarde, mais possível. Era mais fácil em noites frias de chuva. Certa vez, Roberto foi detido e teve que passar a noite na prisão. Sentiu o que era ter sua liberdade, já bastante limitada e condicionada, ser completamente tirada dele: na cadeia ele tinha que dormir de roupas.
Livre da prisão, Roberto, que mesmo na rua podia continuar sendo chamado por um número, voltou pra casa. Tinha um recado avisando que ou ele arrumava um emprego e pagava as contas, principalmente as de aluguel, ou ele seria despejado. A dona da casa conseguia ainda repousar tranquilamente seu coração, já que tinha feito a boa-ação de conceder-lhe prazo para se ajeitar na vida.
Despejado, Roberto foi morar no parque do outro lado da cidade. Lá havia árvores que lhe davam de comer e, em dias de pouco movimento, ele podia ver, pelado, lá de cima, a cidade encolher.
Mas, conforme o tempo passava, Roberto se sentia mais (e mais) atraído à cidade lá embaixo. Parecia que ficar pelado não cabia mais ao seu espírito. Talvez usar roupas não fosse um sacrifício tão grande. Ele se vestiu e desceu ao bolo na esperança de encontrar alguém que aceitasse passar o resto de sua vida pelado com ele lá em cima. Roberto, na verdade, não pensava em nada disso, mas era justamente essa sensação que fazia dele tão comum como todos os outros. E não o fato de ter que usar roupas.


2 comentários:

  1. Linda metáfora. Eu volto pra escrever minhas impressões completas, mas está tarde e este Andante tem um longo caminho até sua próxima parada aqui!

    ResponderExcluir
  2. Lembrei-me!

    Sua retórica é ilustre, e suas palavras são sagazes.

    Seu texto fala da liberdade, enxergar-se como si, dono de si, de seu próprio caminho, e, mais do que tudo, não temer a mão que despe, tampouco a que censura. Abraçá-las como parte da mesma realidade, como parte do todo.

    ResponderExcluir