Ela tinha acabado de terminar a corrida quando a notificação irritante da Uber tocou de novo. Toda vez pensava em trocar o toque, mas só lembrava quando ele tocava.
Franciele estava cansada. Olhou o relógio do celular preso do lado do volante e viu que já eram quase dez da noite. Fez as contas mentalmente e já faziam mais de quatorze horas que estava dirigindo. Só queria ir pra casa, tomar um banho e dormir. As crianças já deviam estar na cama uma hora dessas.
A viagem era longa e pagava bem. Decidiu aceitar. Se for pra muito longe, eu cancelo, pensou. Aeroporto. Longe, fora de mão, mas valia a pena porque sempre havia passageiros querendo voltar para o centro. Aceitou.
Amanda estava nervosa. Estava com medo de não dar tempo. O voo era às 23h38, e ela ainda precisava fazer o check-in, despachar as malas, detector de metais, imigração, olhar bem no fundo do olho do policial federal e dizer que a viagem era a turismo... Mas era melhor deixar para ir bem em cima da hora.
— Amanda? — perguntou a motorista do HB20 branco, cuja placa Amanda nem lembrou de olhar. Sem nem responder já estava dentro do carro.
Franciele pensou em oferecer para ligar o ar-condicionado, pensou em falar sobre o calor que estava fazendo, pensou em perguntar sobre a viagem de avião, pensou em falar do volume da música — mas não disse nada. Ficaram as duas em silêncio. Franciele procurou várias vezes o olhar da passageira no retrovisor, mas ela parecia estar com o pensamento distante; olhava para fora, mas não estava vendo nada.
Franciele se pegou pensando no quanto dirigir já tinha sido uma atividade difícil e mecanizada e hoje é quase natural. Já nem nota mais a troca de marchas ou o pisar no freio ou na embreagem.
No banco de trás, Amanda percebeu que suas mãos estavam suando. Secou na calça. Estava calor; pensou em pedir pra ligar o ar-condicionado, mas não disse nada. Estava tão ansiosa que não viu quanto tempo demorou para chegar no aeroporto. Desceu do carro e antes de fechar a porta conferiu se estava tudo com ela: celular na mão, mala na outra, mochila no ombro, identidade no bolso. Checou o banco e não havia nada. Fechou a porta.
Franciele não esperou a notificação irritante chamar. Decidiu fechar o aplicativo e encerrar seu turno ali mesmo. Já estava muito cansada e era melhor ir pra casa dormir. O relógio já marcava 22h17.
Antes de atender o próximo passageiro, Priscila fingiu que estava verificando alguma coisa no sistema e deu um tempo pra cabeça. A fila ainda estava grande, mas ela tinha fé que mais quinze minutos terminavam tudo e encerravam os despachos de hoje. Havia ainda dois voos domésticos e um internacional. E o pessoal tinha combinado de sair comer depois do expediente. O que ela queria mesmo nesse momento era um chocolate. Ao pensar nessa possibilidade, ela sorriu.
Amanda era a última da fila já tinha uns dez minutos. Pensou que poderia ter chegado mais tarde. Mas sabia que era melhor não arriscar e acabar perdendo o voo. A passagem não tinha possibilidade de reembolso – se perder o voo, já era. Ela não parava de olhar a tela do celular procurando o relógio. Aquele momento parecia demorar uma eternidade. Decidiu cronometrar o tempo de cada passageiro. Quatro pessoas, doze minutos. Ainda faltavam três: nove minutos. Se ninguém inventasse de despachar animal, violão, armas ou drogas, daria tempo. No limite, mas daria.
Era a última passageira. Amanda era o nome dela. Priscila tinha uma prima com esse nome. Tudo certo nos documentos, tudo certo com a mala, tudo certo com o check-in. Tudo certo. Boa viagem! Priscila respirou fundo e pensou em sugerir passarem no drive-thru do McDonald’s para pegar um milkshake; se quiserem dava até pra comer lá mesmo, mais fácil. Ficou feliz com essa ideia.
Fabiana trabalhava como agente de segurança nesse aeroporto havia oito anos. Ela era muito séria no seu trabalho, muito responsável. Sempre levou muito a sério todos os protocolos e exigências. Sempre tentou ser clara e educada com os passageiros. Repetia em tom sério e incisivo, retirem todos os objetos metálicos dos bolsos e coloquem na bandeja, por favor. E repetia. E repetia. E ainda precisava insistir que cintos e moedas também eram objetos metálicos.
A essa altura Amanda já estava mais calma. Apresentar a passagem para quatro ou cinco pessoas e passar pelo raio-x sem que ninguém lhe fizesse perguntas a deixou mais tranquila. Talvez o pior seria na imigração. A fila não estava tão grande quanto ela imaginou e havia três policiais fazendo o trabalho. Sua vez chegou rápido. O suor lhe escorria gelado da nuca pela espinha até o calcanhar.
Amanda ensaiou mentalmente responder que era uma viagem a passeio. Que pretendia ficar dez dias na Espanha e depois França e Portugal. E que não tinha comprado passagem de volta, mas que tinha dinheiro em espécie e no cartão de crédito. E que, sim, tinha sido ela mesma quem comprou a passagem, que tinha juntado dinheiro bastante tempo para conseguir fazer essa viagem. E que estava indo pra Espanha encontrar uma amiga brasileira que fala bem espanhol e francês e que elas viajariam juntas pela Europa.
A policial portava um crachá pendurado no pescoço escrito Kelly, em maiúsculas. Olhou atentamente os documentos, conferiu os dados, digitou algumas coisas no computador, olhou no fundo dos olhos de Amanda e disse “Obrigada. Próximo!”.
No portão de embarque, Jennifer e Patrícia conversavam sobre aonde iriam mais tarde. Uma delas falou de irem no bar do hotel na avenida; lá sempre vai o pessoal da Companhia inclusive o pessoal da tripulação; e que ela queria comer bolinho de carne seca. A outra disse que a Priscila havia mandado mensagem para passarem no méqui pois queria comer milk-shake.
Faltavam dois minutos para o fim do embarque quando Amanda chegou. Foi amavelmente recepcionada com sorrisos e desejos de boa viagem. Entrou no avião e quase todos os passageiros já estavam em seus assentos; apenas as comissárias estavam em pé. Achou seu assento e sentou-se ao lado de uma mulher e uma adolescente, que presumiu serem mãe e filha.
Assim que as portas se fecharam e o avião ligou as turbinas, Amanda suspirou aliviada. A primeira parte do plano havia sido concluída com sucesso. Ela percebeu que as quatro comissárias de bordo eram mulheres e se perguntou se quem estava pilotando também era.
Lá na frente, prestes a iniciar o checklist pré-decolagem, a comandante Érica lembrou que havia sido lançada a segunda temporada da série que ela estava acompanhando.
Meu caro, seu conto é intrigante, utiliza com habilidade um narrador onisciente seletivo múltiplo para tecer uma trama repleta de tensão e humanidade. A alternância entre as perspectivas de Franciele, Amanda, Priscila e Kelly enriquece a história, dando voz a diferentes experiências sem perder o foco na jornada central. Você consegue mergulhar nos pensamentos íntimos de cada uma, revelando suas ansiedades e motivações, mas mantém um tom neutro, como que cinematográfico, evitando didatismos, deixando para quem lê interpretar nuances. Essa escolha narrativa funcionou muito bem, criando um mosaico de subjetividades que reflete a solidão urbana e os encontros fugazes da vida contemporânea.
ResponderExcluirAcredito que algumas personagens poderiam ser mais verticalizadas. Fabiana e Kelly, por exemplo, têm potencial para mostrar sua profundidade. Suas aparições são breves e funcionais. Suas vozes internas merecem se destacar no cenário. A Priscila, por outro lado, está muito bem construída em seus poucos parágrafos — o desejo por um milk shake e o alívio no final do expediente são eficientes. Se todas as adjuvantes tiverem o mesmo tratamento, a narrativa ganhará ainda mais força.
Quero destacar, amigo, o suspense em torno de Amanda até o fim, sem entregar demais. A ansiedade no aeroporto, os ensaios mentais para a imigração e o alívio ao embarcar criam uma atmosfera de mistério que prende a atenção. Ainda assim, me pergunto se um indício mais contundente sobre o plano dela ajudaria a aumentar a tensão sem quebrar o realismo. Claro, é uma escolha estilística, e a decisão de manter o enigma pode ser intencional, mas acho que afinaria a seletividade onisciente almejada. O equilíbrio entre revelação e sutileza é delicado, e você já conseguiu acertá-lo.
Outro ponto forte do conto é como você retrata a rotina cansativa de Franciele, tornando-a uma figura profundamente real. Suas reflexões sobre a direção mecanizada e o cansaço acumulado são tocantes e universais. A transição para o fechamento do aplicativo no final parece abrupta. Alongar esse momento ajudaria a criar a sensação do peso daquela decisão — afinal, depois de catorze horas de trabalho, ela finalmente desiste de uma corrida. Um último olhar para o aeroporto, um suspiro mais demorado, ou até mesmo um pensamento sobre as crianças em casa poderiam fechar seu arco com ainda mais impacto.
Por fim, Somente Ida apresenta personagens complexas e uma narrativa fluida, em poucos parágrafos. A estrutura multifocal funciona, o ritmo é bem dosado, e o tema do isolamento em meio ao caos urbano é tratado com sensibilidade. Os comentários maledicentes do crítico não diminuem a qualidade do texto, que está muito bom. Parabéns pelo trabalho e um abraço de seu leitor e crítico amigo.
Como sempre, genial! O que eu mais amo nesse texto é que há equilíbrio muito bem construído entre o cotidiano e o suspense silencioso...tem humanidade, sabe? Algo que só alguém desacelerado, com um olhar atento para detalhes da vida, poderia escrever. É muito William da sua parte! Leria um livro inteiro de contos de conexões das rotinas das pessoas, mostrando como todos temos muito mais em comum do que sabemos.
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