Sinfonia Agridoce

I
Quinta-feira, 30 de abril de 2020.
23:11
– Oi! Sou eu. É… desculpa a hora. É que eu tava aqui pensando na vida, no universo e tudo mais e lembrei de você. Queria, sei lá, ouvir de você. Saber como você tá… se sossegou, se achou alguém… se você casou… E desculpa mandar áudio – sei que você não gosta… Mas é mais fácil quando a gente tem bastante coisa pra falar
23:13
– É engraçado, né? Esse negócio de isolamento social faz a gente ficar lembrando das coisas… Será que esse tal de vírus não é uma arma biológica feita pra que todo mundo volte a pensar no ex? Hahaha! Já pensou?
23:17
– Não sei se é o vírus ou se é porque eu tô bebendo faz tempo… Você nunca pensou em ligar ou, sei lá, mandar mensagem, na madrugada boladona, depois de beber umas?
23:28
– Tomara que você não mudou teu número. Tá sem foto, fiquei na dúvida. Vai que eu tô falando aqui esse monte de baboseira pra uma pessoa completamente desconhecida! HAHAHA!
23:41
– Eu achei aqui uma música que me faz lembrar de você! Aí eu coloco ela pra repetir de novo e de novo, até eu acabar dormindo, e derramo minhas bebidas no sofá! Hahaha!
23:51
– Alguém me disse esses tempos, já nem sei mais quem foi, que você ainda me amava. É louco, né? Parece que o destino promete tudo pra gente e no final ele não dá nada! Ele tira sarro da nossa cara!
23:57
– Você não tá aí agora, né? Queria conversar com você. Só ouvir tua voz. Tua voz me acalma. Saudades. … A gente podia estar juntos, se você quisesse
Sexta-feira, 1º de maio de 2020.
00:09
– Quando tem um risquinho só é porque você tá sem internet, né?

II
Sexta-feira, 1º de maio de 2020.
09:11
Bom dia ou boa tarde ou boa noite.
Pensei bastante antes de começar a escrever para você. Acordei cedo hoje; como em todos os dias nessa rotina de homeoffice; estou tentando manter uma rotina; mesmo hoje, feriado. Mas parece agora que todo dia é feriado. A vida agora é essa coisa estranha de vivermos trancados dentro de casa, sem que possamos ver ninguém; sem podermos abraçar. Quando, hora ou outra, conseguimos sair de casa, o mundo é visto através de lentes embaçadas. A paranoia é constante. A vida agora tem cheiro de álcool em gel.
Pensei bastante antes de começar a escrever para você. E agora não sei por onde começar. Tem tanta coisa que queria lhe dizer, mas não sei como.
E acordei pensando em nós. É uma sensação estranha. Parece irreal! É como se a quarentena nos forçasse pensar nos nossos relacionamentos anteriores. E mais: faz-nos lembrar apenas da parte que foi boa. Fez-me lembrar do quanto fomos felizes juntos. Nós. Eu e você.
Fez-me esquecer que prometi que nunca mais bateria à sua porta. Fez-me esquecer que prometi nunca mais ligar para você. Já não lembro mais que amei em dobro. Meu sentimento valia para nós dois. Era para ter sido eterno, mas o para sempre escorreu em nossas mãos – evaporou por entre os dedos, como álcool em gel!
Pensei bastante antes de começar a escrever para você sobre como faria para entregar-lhe esta carta. Pensei em deixar na sua porta. Acho que vou mandar via carro de telemensagem! Mas agora que escrevi já sei que não vou entregar. Quando colocamos no papel e transformamos o pensamento em palavras, as coisas se esclarecem. E agora está claro que ainda não superei. Percebi que fiquei aqui esperando você voltar.
Talvez a pandemia, na verdade, sirva para nos livrarmos de vez dos nossos relacionamentos anteriores.

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