Amém!

[…] 'Till human voices wake us, and we drown
Eliot

De propósito ele havia mandado pintar de branco todas as paredes daquele cômodo – inclusive a porta pelo lado de dentro. Como ali não havia janelas, estava criada a perfeita sensação de isolamento. Sempre quando sentia a vontade de sentir sua liberdade, descia as escadas e trancava a porta atrás de si. Ali dentro, ao mesmo tempo em que se sentia enclausurado, se sentia sem horizontes delimitadores.
Anos antes quando a sua vida o havia abandonado, ele a deixou para trás e foi morar naquele barco; sua vizinhança passou a ser o mar e seu temperamento instável. Várias vezes seguiu sem rumo cortejado de perto por caravanas de golfinhos ou baleias que zombavam de sua submissão ao mar velho e rabugento que lhe maneja as rédeas. Os companheiros cetáceos sempre enfatizavam seus insignificantes tamanhos em relação à imensidão daquele gigante deserto molhado.
Naquele dia ele assistiu o nascer do sol com a mesma emoção de sua infância. Em sua garganta o nó de ter de aportar mais uma vez. Suas lágrimas haviam sido secas e salgadas, mas naquela manhã de muitas nuvens ele chorou como a criança que tinha feito questão de deixar de ser.
As paredes já havia tempos não eram mais a mesma pureza. Elas haviam se tornado o diário de viagem e nelas estavam registradas as intempéries e os dias de sol; listas de nomes, listas de sentimentos, listas de compras. O chão estava sujo com a areia das praias e restos de terra que ficavam sob os sapatos nas poucas vezes em que ousou pisar em solo firme.
Dia a dia ele usava pedaços dos gizes de cera jogados no chão do seu quarto da loucura para registrar o passar do tempo. Em vários espaços de toda a parede estavam incontáveis grupos de quatro traços cortados no meio por um maior. Ele admitia que já não fazia ideia do tempo que havia passado longe de pessoas – das pessoas. Já não lembrava mais se cada risco representava um dia ou uma hora. Ou um sentimento.
Aquele era dia de aportar. Pela primeira vez depois de todo aquele tempo ia voltar ao porto de onde havia partido. No fundo ele se sentia triste e quando se deu conta disso não tentou esconder de si mesmo. Ele sabia que voltaria ao barco trazendo a terra de sua sepultura.

Quanto mais tempo passava longe mais a cidade dos ratos se tornava suja e caótica. O vento do mar carregava pelas ruas estreitas os papéis jogados no chão. O céu era cinza e o vento era frio e os ratos imersos dentro de sua introspectividade se encolhiam e andavam rápidos e cabisbaixos. Ele se sentia perdido no lugar onde viveu maior parte de sua vida. Ele sabia, afinal, que o que havia deixado para trás não era mais parte de si. Menos ainda que antes, ele não se sentia como um deles.
— Traga solo suficiente para me enterrar. Sim, por favor, embrulhe para viagem.
Era ao mesmo tempo nostálgico e amargo revisitar aquelas vielas. Aqueles transeuntes não eram mais seus amores – ele tinha deixado de ser um rato e se tornado um peixe! A cidade já não o atraía; era o mar e sua não companhia seu novo e único amigo.
Caminhando por aquelas ruas povoadas de ratos que se esbarravam e se trombavam sem se notar, ele passeava por seu passado, passava pelas casas, que, como corações adolescentes, o esperavam de volta de braços abertos. Ele não se sentia tentado em ficar; o que ele havia se tornado não o permitia gostar daquele lugar – se ao menos fosse possível levá-lo consigo para o barco...

Deixou a cidade com a mesma opacidade com que entrou – ninguém o viu, ninguém vê. Suas pegadas não perduraram por muito tempo, a multidão logo as fez se mesclar com as tantas outras. Não fez questão de apagar suas pegadas, mas precisou ter a certeza de que ninguém o estava seguindo.
De volta ao barco, de volta ao mar, içou as velas e apontou para o sul e seguiu seu caminho; chegará no destino que ainda não sabe qual é, apenas se os ventos o permitirem; não é a vontade dele que está em jogo.
No quarto abaixo das escadas, riscou mais um traço e pôs-se a escrever seu epitáfio. Era, na verdade, ele sabia, um capricho; seu objetivo não era mostrar para quem quer que fosse. Naquele quarto ele não queria que ninguém entrasse, por isso se assegurou de aquela porta fechar e de tranca-la e de retirar da fechadura a chave. E ali dentro mais uma vez repensaria sua existência [...]

Um comentário:

  1. Por mais que a cidade o esperasse, ele sabia que já não era parte dali. Por isso, o pensamento de levar tudo aquilo com ele no barco me parece uma tentativa de transportar um passado distante ao seu novo mundo, o que não daria certo, pois dentro dele e desse novo mundo nada é igual. Por nada ser igual, tudo daquela cidade mudaria e não teria mais o mesmo valor...

    Eu gostei das contradições construídas no texto, com o enclausuramento que dá sensação de liberdade, com o deserto molhado (adorei isso!), com a vontade de registrar algo que não será lido...

    E acho que, pra mim, o epicentro do texto é mesmo aquele trecho sobre levar a cidade no barco. Ele representa todas essas contradições do personagem e de cada ser humano. A vontade de ver o passado e de poder viver nele de novo, mas de não mais reconhecer-se nele, de não mais ser parte daquilo que era antes, de reconhecer-se alguém completamente diferente, de ver-se peixe, quando antes, via-se rato.

    E, de novo, me encantei! :)

    ResponderExcluir