Um Punhado de Terra

– Você ouviu isso?

Ela já não tinha certeza do que sentia. Parecia que, de repente, todas as coisas do mundo tivessem deixado de existir e essas coisas que existiam agora tinham sido colocadas às pressas para substituí-las.

Era um barulho de sirene. Não era alto, mas incomodava; roubava toda a atenção, embora não desse pra saber de onde vinha. Parecia um alarme de emergência; parecia que estava tudo pegando fogo e quem pudesse deveria correr para se esconder. Fez ela lembrar das sirenes que avisavam a população sobre os ataques aéreos na segunda grande guerra. Era como se ela estivesse no meio daqueles sonhos estranhos em que nada parece real e que você tem consciência de que é um sonho e sabe que vai acordar cedo ou tarde – daqueles sonhos que não são tão ruins para serem chamados de pesadelos; e no meio desse sonho você sente que está acordando, mas não acorda. Era o que ela sentia: a sirene era como o despertador; como aquela tinta borrada que destoa de o restante da pintura.

A sirene vinha de lugar nenhum.

– Sim. É aquele carro de polícia.

O rapaz que estava sentado no banco ao seu lado foi simpático ao responder, mas ela via nos olhos dele que ele achou a pergunta um tanto inconveniente. Ele apontava a viatura da polícia com suas luzes vermelhas gritando entre os outros faróis.

Ela levantou de supetão e decidiu descer do ônibus. Sabia que não devia estar longe do centro da cidade, mas não sabia onde estava. Seus pés doíam e ela andava sem pensar.

Ela não queria voltar pra sua casa; sabia que deveria ter arrumado e limpado as coisas por lá havia dias, mas era melhor adiar. Ela se sentia desmascarada em casa; se fora dela ela se sentia despedaçada, em casa ela via que nunca tinha tido todos os pedaços. Quando jovem, os espelhos da casa de sua mãe, que, para ela, criança, nunca mentiam, mostravam seu rosto cheio de imperfeições; faltava-lhe um olho e seu nariz era torto. Nos de sua casa, hoje, ela não consegue se ver; ela vê a cama e a janela ao fundo e onde deveria estar seu rosto, uma grande névoa.

Seus passos, como sempre, mais uma vez a levaram àquela mesma praça. Havia algo naquele lugar que a atraía de modo com que ela nem via o quão cega ela estava sendo. Era àquele minúsculo pedacinho de terra sem calçamento que ela corria; sentir todos os grãos de terra de cada punhado em sua mão a fazia se sentir flutuando. Se ela não sabia quem era, ali ela não sabia que existia. Havia dias em que ela perdia horas ali e negligenciava todas suas responsabilidades. Mas, ali, na hora, ela não pensava em nada disso.

Só depois, de volta à sua casa, depois de cair na real de o que estava fazendo é que ela via aonde ela estava chegando. Era o que ela estava fazendo com sua vida.

Fora de seus devaneios, rodeada de pessoas, ela se perguntava se eles também se sentiam como ela. Será que havia mais loucos como ela ou loucos são os que não fazem as loucuras que ela faz? Chegou certa vez a comentar com seus amigos, mas não soube montar a pergunta e achou melhor deixar pra lá.

Nas paredes de seu quarto desenhou pedidos de socorro que nem ela voltou a ver. Hoje seus pedidos atendem mais pessoas, mas ela sabe que não desenha tão bem e não mostra suas obras de arte aos médicos. Ela teme o Rivotril.

E era ali, sentindo os grãos frios da terra gelarem seu rosto, que ela se sentia viva de verdade. Ela não sabia disso; nem suspeitava por que voltava tantas vezes àquele lugar. Se lhe perguntassem, talvez até negasse que vinha tantas vezes.

Ali, deitada de braços abertos olhando as nuvens no céu noturno, que, vistas dali, pareciam rosadas, ela se perdia em seus pensamentos. Lá estavam os prédios, todos tão grandes e esmagadores, fazendo-a parecer um grão de terra. Se ela tivesse asas, ela bateria em retirada dali e lá de cima veria os prédios todos pequenos lá embaixo; sentiria o frio das nuvens, sua roupa umedecida e congelante. Voaria nua por cima da cidade. Lá de cima, assistiria o fim do mundo. E quando se enjoasse ou se sentisse sozinha demais, lá em cima deixaria suas asas parar de bater.

Já era tarde da noite; a praça tinha se esvaziado. Debaixo de um dos bancos, um cão; sobre um outro, deitado, aquele velho abraçado ao seus cadernos de desenho – parecia que ele estava sempre de olhos abertos. Ainda deitada, com terra por todo seu cabelo, ela pensou no ciclo que acabava para que outro começasse; no fundo, ela sabia que o dia seguinte seria igual àquele: a mesma rotina, as mesmas pessoas. Mas num daqueles momentos em que brilha um lampejo de esperança, ela levantou dali; ia pra casa dormir, com a certeza de que o outro seria um dia perfeito. Antes de ir, parou e olhou para aquele pedaço de terra.

– Adeus!

2 comentários:

  1. alguém mais não gostou desse estilo de paragrafação?

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  2. Acho que você está escrevendo muito, mas no sentido bom da palavra. Que houve com os micros? Bem, de qualquer maneira, acho que a paragrafação está natural, nada muito descontínuo nem amontoado. ;D

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