Coração Inflamável

Arranjadas por ano, ali no chão, estavam todas as cartas. Organizadas em pilhas por ano. Depois, por cor e por forma de papel. E, além disso, todas ali organizadas cronologicamente. As de cima das pilhas foram desorganizadas por uma rajada de vento.
Era inverno. Garoava. Estava frio. Sempre estava frio. Havia um bom tempo desde a última vez que o sol apareceu. As tais flores prometidas e ansiadas da primavera nem deram sinal de que vão um dia ainda aparecer. Duvido.
Levantei e fechei a janela. A cortina, de um tecido de um amarelo fosco, tinha agora uma mancha marrom molhado pela chuva que invadiu. Lá fora, o céu pintava o rosto das pessoas de cinza; as árvores da calçada pareciam de cimento; os carros pretos e pratas sobre o calçamento de cimento. Cinza.
Horas depois, voltei ao chão. Às cartas. Havia algumas espalhadas. Pensei em organizar tudo de novo. Àquela hora, o fogo da lareira já ia alto. Talvez se eu organizasse por remetente, eu ia entender o que tudo aquilo tinha a ver com nada.
Sentei-me na frente da lareira e resolvi não ler nenhuma daquelas linhas. Resolvi apenas contemplá-las: organizadas e belas e cheias de letras.
Deitei-me no chão.
Sem pensar em números, assisti, sem pensar, o caminhar vagaroso dos ponteiros do relógio. Sem pensar. Pensei em não pensar, por isso pensei. Pensamentos me devoravam vagarosos.
O fogo da lareira se apagava. Àquela hora a sala estava bem escura. A chama ia logo se apagar. Joguei no fogo minha mão esquerda. A sala brilhou e logo voltou ao escuro. Meu braço, em seguida, fez brilharem meus pensamentos por mais tempo.
O silêncio daquela casa me destruía. Achei melhor me levantar e por uma música pra me distrair. Pus fogo em minha perna e fui aos pulos até a estante. A perna esquerda. Nas prateleiras escolhi cinco dos meus melhores cds e coloquei na bandeja. Músicas calmas. Eu queria ouvir músicas calmas.
Agarrei o controle remoto e voltei pro chão. “Tudo o que eu precisava, nunca mais precisei”: era, então, minha perna esquerda que iluminava meus escritos, ali, jogados no chão. Eu nunca mais ia querer lê-los. Nem vê-los. Nem mais ninguém.
Meus olhos lacrimejavam com a luz do fogo. As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu não queria pensar. Eu não conseguia pensar. Eu já não pensava. A luz me cegava e eu ainda não tinha deixado de prestar atenção no relógio. “Eu te dei minha mão, disse 'tudo bem abandonar, é hora de sair daqui'”. Não queria nunca mais ouvir nem o relógio nem o gemido dos alto-falantes. Aquelas glândulas lacrimais estavam já velhas e ultrapassadas. Eu não precisava delas. Nunca mais precisei.
Sem hesitar, embora com muito cuidado, eu tirei minha cabeça do pescoço. Sem sentir nada, ela logo estava no fogo. Dali em diante, escuridão total e silêncio. Não via mais nada. Não ouvia mais nada. Não havia mais nada.
Só então percebi o que era não pensar tão obstinadamente naquela mesma coisa. Sem pensar, consegui deixar de pensar.
Sem poder saber que música tocava, me arrastei com dificuldade pra dentro da lareira. Não pude sequer ver o brilho que emanou do meu resto de corpo. Espero que estivesse tocando Beatles. Acho que ninguém viu.

6 comentários:

  1. Will, will
    Sempre me surpriendendo.
    Normalmente consigo me identificar, fazer contato com seus textos logo de cara.
    Esse foi diferente. Admito que ainda não o assimilei por completo. Mas isso é legal, por ser novo.
    Acho que vou 'ruminar' ele na cabeça mais um pouco e quem sabe volto aqui. ;)

    by the way, após meses de hiato, postei no blog.
    Beijo.

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  2. Carlos-Dimitri Pierrot15 de dezembro de 2009 às 14:00

    Vou suicidar minha interpretação na lareira e voltar depois aqui com as cinzas... os seus textos parecem ter sido escritos menos para serem lidos do que relidos x]

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  3. e eu, ironicamente, falei que tinha gostado desse texto. hahah

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  4. Será preciso mais de uma leitura para silenciar pensamentos sobre esse texto...
    Ou talvez, seja melhor não pensar...


    Simplesmente, me encantei!

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  5. Como se cada parte fosse destruída. Mas não como costumo fazer com tal aitude, deixar queimar para renascer das cinzas de tais lembranças. Apenas queimar, e deixar uma parte de você queimar junto. O importante não seria necessariamente renascer, e, aliás, considero uma mera inferência pessoal. Apenas queimar.

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