Autotrofia

Havia quem lhe dissesse que comer é um prazer solitário; o êxtase ou o que quer que seja aquilo que se sente ao comer só é bem sentido quando se está sozinho. O sabor da comida, seu cheiro, o quanto está deliciosa; o sentir da comida sendo jogada de lado a lado sobre sua língua e tocada pelos dentes. Todavia, o dever social humano de nunca ignorar as pessoas que estão em volta impede que a comida seja devidamente apreciada; não lhe é reservado o prazer que ela merece.
Ela, no entanto, não pensava assim. Ela concorda que é, sim, sem dúvida, um prazer que se sente sozinho, mas que, para que seja mais bem aproveitado, deve ser vivido simultaneamente com alguém. Afinal, qual é o prazer que não se sente sozinho? Mesmo que acompanhado ou proporcionado por alguém e/ou para alguém, todo prazer é sentido sozinho. E, por isso, ela sempre precisava ter alguém por perto. É melhor ter alguém por perto que também esteja sentindo aquele mesmo prazer.
Só que ela precisa todos os dias comer sozinha. Sem opção. A menos, pensava, que fizesse amizade com a pessoa da mesa ao lado e fizesse um novo amigo por dia. Mas não: curitibanos simplesmente não funcionam assim.
Contrariada e sem vontade, ela comprou um sanduíche e sentou na mesa em frente à janela do andar de cima naquela lanchonete da Boca Maldita. Apesar ser a hora do rush, ela sentou lá sozinha, entre todas aquelas mesas. O vidro da janela abafava o som da correria do fim de tarde lá de fora; ali dentro reinava o silêncio – falta uma musiquinha ambiente, pensou.
Lá embaixo, as pessoas pareciam tão iguais umas às outras. Embora parecesse uma bagunça total, ela conseguia ver que todos andavam na mesma velocidade – os que iam mais rápido seguiam todos na mesma velocidade alternativa; eles andavam mais ou menos em fila; vestiam roupas mais ou menos parecidas umas com as outras.
O silêncio foi quebrado por um senhor que subia em passos lentos e barulhentos pela escada. Ele a olhou com um olhar simpático, mas não falou. Naquele mesmo ritmo escolheu uma mesa também não muito longe da janela e pôs-se a comer.
Ela simplesmente não se sentia à vontade. Ela jogava a comida pra dentro da boca, molhava desleixadamente com aquele suco sem gosto, jogava de qualquer jeito de um dente pro outro e quase sem mastigar engolia.
Lá embaixo, um carro de polícia, um menino e um violão, um carrinho cheio ao máximo de papelão, um executivo e uma mulher já de idade vestida de palhaço. Mesmo com suas funções absurdamente diferentes, eram todos tão iguais.
No meio da multidão ela viu um menino que se vestia com roupas muito parecidas com as que seu irmão costumava usar. Olhando com mais atenção, ela viu que até o boné e o corte de cabelo eram parecidos. Ele estava longe demais para ela ter certeza, mas aquele podia ser realmente o seu irmão.
Na direção oposta, com passos firmes e alternativamente rápidos, vinha uma mulher que ela percebeu ser muito parecida com sua mãe. Aquela mulher chamava atenção de um jeito diferente; parecia que, apesar de usar um padrão de vestimenta muito parecido com o dos outros, ela tinha algo especial que lhe conferia um caráter único.
Prestou mais atenção no fluxo contínuo de pessoas e encontrou lá no meio mais conhecidos: primos, tios, amigos, vizinhos… e em todos eles havia um brilho diferente, como se estivessem lhes apontando holofotes. Perguntou-se se apenas ela via as luzes; concluiu que, talvez, na verdade, as pessoas não fossem assim tão iguais. Embora olhando todos de longe parecesse fácil juntá-los num imenso bloco e dizer que são todos realmente muito parecidos, unitariamente, de perto, não são tão iguais assim. Ou talvez ela tenha tido sorte de conhecer justamente as pessoas que não seguem as massas tão à risca.
Foi quando, no meio da multidão, ela viu uma menina igual a ela.
E aquela menina que ela admitia ser exatamente igual a ela mesma, que com certeza se passaria por ela em sua ausência, não tinha um holofote que lhe apontava. Ela era simplesmente mais uma somada à multidão. Parecia não haver – como com seus conhecidos – nada que lhe tornasse única. Ela vestia roupas como as de todo mundo ali em volta; seu caminhar, no tamanho de seus passos e na velocidade em que andava, era igual aos de todos. Nada lhe fazia se sobressair; ela via que seu clone era só mais um na multidão.
Nessa hora, a comida revirava-se em seu estômago. Aquilo não estava de forma alguma lhe sendo prazeroso. Concluiu que devido à sua voracidade de desprazer com a comida ela estava tendo essas alucinações. Decidiu sair dali.
Levantou-se, pegou sua bandeja e foi sentar junto ao velho simpático. O velho lhe acolheu muito bem. Enquanto isso, lá embaixo, um holofote acendia-se sobre sua imagem semelhança.

Um comentário:

  1. Carlos-Dimitri Pierrot24 de novembro de 2009 às 10:45

    É poesia em prosa, no melhor estilo modernista - feita tão-somente para ser sentida.

    (se não tiver mais jeito, abandone Letras, mas nunca a Literatura)

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